Hoje sentimos um vento...
“Diz que eu ia fazê uma festa
Numa noite de São João
Sonhei que fui pedía a Deus
Se me dá artrorisação
Tudo era ‘migo meu
Dos cantadô qui morreu.
Prá fazê uma seleção
Pra torná vorta na terra...”
Abel Bueno seguiu a sina de seus versos, foi “pedi Artorisação” na segunda-feira. Silenciosas, as violas de Piracicaba ficaram por não mais poder harmonizar histórias da vida caipira, cantadas como contos que não estão em livros, na internet ou em pesquisas acadêmicas. “Eu não falo do que pesquisei, eu falo do que vi” disse o cantadô, que era dono uma sabedoria que nasceu da vivência da cultura caipira, daquele que desde criancinha já passava noites ouvindo seu irmão cantar repentes, e ao longo da vida encantou diversos encontros na cidade e na região com sua inventividade deensinar.
O cantadô Abel deixa a cultura de Piracicaba órfã de um pai que é (ele ainda é) e de uma referência cada vez mais difícil de se encontrar. Referência da memória oral, de suas raízes que parece muitas vezes serem podadas em favor de “potenciais de biocombustíveis” de uma necessidade de avançar em indicadores muitas vezes abstratos, que em nada se importam com o modo que são construídas ou impostas novas culturas em um local. Piracicaba avança, mas com a mesma puljancia deve avançar as formas com que trata sua história, sua cultura. O cururueiro é mais uma memória viva que se vai, entristecendo nosso “liguajá caipira” e sua particular forma de ensinar.
Stuart Hall, teórico dos estudos culturais nos mostra que a cultura é a linguagem de significações criadas por um povo; A de Piracicaba, caipira por excelência, não pode ser dita sem os versos de Abel, do
seu modo característico de falar e, das apresentações dos cururueiros ainda existentes. Não valorizar essa cultura é anular parte significativa de nossa identidade, das as origens que remetem ao nosso estimado rio, ao modo de vida das pessoas do campo, de um outro modo de saber e conhecer as coisas, as pessoas, o mundo. Urge a necessidade de uma política efetiva para a história oral de Piracicaba, para a história do seu povo.
A criação de um museu de tradições populares, que se pretende um museu vivo no sentido de ser um local de encontro onde a cultura também é produzida, aparece como “grande
chance” para pontuar um lugar na história, na qual muda-se um curso que vai rumo ao apagamento para outro, o da demarcação de nossa identidade. Esta identidade tão fundamental quando pensamos em um projeto de cidade, que esta preocupada com crises, com o futuro, com a sustentabilidade, com seus recursos, com suas riquezas (materiais e, principalmente, imateriais). É preciso dar mesma valorização e emprenho à
cultura da cidade, e as intenções de preservá-la, da mesma forma com que se dá para construção de pontes, pois, só assim poderemos atravessar as pontes já existentes com uma verdadeira carga da nossa terra. Valorizar a cultura é semelhante a semear sementes que perduram para além de uma safra, engraxar com uma graxa que não sai com a fricção do tempo.
Abel Bueno se foi e em uma premunição registrada no livro “Cururu em Picacicaba”, para aqueles que acreditam nisso, deixou estes versos para nos ensinar o porque do vento que sentimos hoje...
“Uma vez tive um sonho.
Antes e durmi comecei a lembrá dus nomes dos cantadô du passado, que já morreram há 30, 40 ano.
Sonhei que se Deus num autorizava a trazê na terra, denovo, esses cantadô pra cantá otra veiz cum quem tá vivo.
E Deus autorizô.
Eu perguntei como é que eles viria.
E a resposta dizia que eles viria c’o vento.”
Cabe a nós sensíveis aos ventos que nos sopram, valorizar a sabedoria da nossa terra, como vem fazendo o Fórum de Tradições Populares de Piracicaba ao longo desse quase um ano de existência, promovendo discussões e ações sobre a cultura popular da nossa cidade. Agora, para também fazer valer as vontades de ”seu” Abel, ativo lutador dessa causa, valorizando a tradição, que está viva, em outros cururueiros de Piracicaba.
Texto de: Gustavo Torrezan, Manuel Guglielmo, Raul Rozados Ribeiro, Rita Moura, Chico Galvão.
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